Apresentação ao mundo da alfabetização
Parte fundamental na formação da cidadania, o processo de alfabetização tem inspirado debates entre gestores públicos do setor e especialistas. Essas discussões foram ainda mais aprofundadas, a partir do lançamento, pelo governo federal, do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
A nova política educacional vai subsidiar ações concretas dos estados, municípios e Distrito Federal para a promoção da alfabetização de todas as crianças do país. O objetivo é garantir que 100% delas estejam alfabetizadas ao fim do 2º ano do Ensino Fundamental, conforme a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Até 2026, serão investidos R$ 3,6 bilhões.
O Compromisso também busca promover a recomposição das aprendizagens, com foco nas crianças matriculadas no 3º, 4º e 5º ano, tendo em vista o impacto causado pela pandemia da covid-19 nesse público.
A nova política tem como foco a alfabetização na idade prevista na BNCC: aos seis e sete anos de idade, quando as crianças devem estar cursando o 1º e o 2º ano do Ensino Fundamental. No entanto, segundo o Ministério da Educação, é preciso atuar antes e depois desse processo. Na Educação Infantil, por exemplo, quando as crianças têm de zero a cinco anos, é necessário proporcionar momentos de vivência e experimentação com o mundo da cultura oral e escrita.
Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, explica que a alfabetização é um processo extenso, que começa mesmo antes da criança entrar na escola, uma vez que ela está inserida em uma cultura letrada na qual a leitura, a escrita geram interesse pelas letras e palavras. “Isso não significa que a alfabetização precisa ser antecipada, ao contrário, ela não deve ser objeto da Educação Infantil. As etapas da creche e pré-escola acompanham um período crucial do desenvolvimento da criança. É nessa fase que aprende a se relacionar, viver em sociedade, se desenvolve cognitiva e socioemocionalmente, o que é fundamental para a sua formação humana e também para a alfabetização”.
Para Mariana, na primeira infância não se deve utilizar métodos de memorização e repetição. “Devemos garantir o que está estabelecido na BNCC da Educação Infantil, que são práticas de leitura e escrita ancoradas na interação e na brincadeira. Com ludicidade, significado e bem alimentadas pela intencionalidade pedagógica do professor. É assim que criaremos bases sólidas para que o processo de alfabetização se conclua nos anos posteriores”, afirma.
Elza Silva, coordenadora do GT de Educação Infantil da Undime, e DME de Bonito/PE, afirma que a educação infantil é essencial para o desenvolvimento integral das crianças, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. “A criança, como centro do processo de ensino, necessita de interações sociais para o seu crescimento, ao mesmo tempo em que brinca, aprende e realiza a troca de experiências. Assim, nós, DME, temos a responsabilidade de garantir o direito de brincar e de ser cuidado, e organizar a oferta da educação aos bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas”, destaca.
Para Marcia Baldini, coordenadora do Grupo de Trabalho de Alfabetização da Undime, e Dirigente Municipal de Educação de Cascavel/PR a alfabetização é um processo constituído por um conjunto de saberes, portanto, o conflito entre concepções e métodos não pode interferir na garantia da aprendizagem e da alfabetização das crianças.
“O contexto, a diversidade e as características das crianças devem ser consideradas e respeitadas, nos processos de ensino e aprendizagem. Assim, metodologias e estratégias didático-pedagógicas precisam ser diversificadas e aplicadas, sempre respeitando as características de cada comunidade escolar, lembrando que a prioridade é o ensino dos conhecimentos científicos que são a base para a formação do sujeito. O primeiro passo para assegurar o sucesso escolar é garantir que todas as crianças sejam alfabetizadas, nesse sentido, a prática docente exige conhecimento, planejamento e intencionalidade nas ações de ensino”, afirma.
Na visão de Elvira Souza Lima, pesquisadora em desenvolvimento humano, alfabetizar-se é se apropriar da escrita, um sistema linguístico que é, segundo ela, produto cultural da evolução da espécie. Para a educadora, essa apropriação se dá como uma aprendizagem cultural, pois não há predisposição genética da espécie para ler e para escrever.
“As pesquisas da neurociência revelam que para aprender a ler são necessárias 17 áreas do cérebro e, para escrever, são ainda necessárias outras áreas. O desenvolvimento destas áreas resulta de ações específicas realizadas pela criança no período que vai do nascimento até os 6 anos”, diz Elvira.
De fato, no livro, “Educação infantil como prelúdio da alfabetização”, a pesquisadora trata destas áreas do cérebro, da função simbólica e das ações que a criança de 0 a 6 anos precisa realizar para chegar naturalmente à alfabetização. “Destaco a importância do movimento e das brincadeiras, da educação dos sentidos que envolve, entre outros, o desenvolvimento do cérebro musical com percepção dos sons, execução de padrões rítmicos, composições melódicas e a educação literária, que introduz a criança, desde bebê, ao universo das histórias, das narrativas e da poesia”, explica Elvira.
Segundo ela, a alfabetização é um momento natural do desenvolvimento biológico e cultural da criança, que não precisa ser antecipado para uma idade em que a prioridade é o desenvolvimento da função simbólica. “Assim, brincar, desenhar, cantar, dançar, interagir com a natureza, ouvir histórias e dramatizar são as atividades essenciais da Educação Infantil”, enfatiza.
Patrícia Corsino, professora associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considera que a Educação Infantil ocupa um lugar muito importante no processo de apropriação da linguagem escrita pelas crianças, mas não tem a função de alfabetizá-las.
Segundo ela, as crianças estão no mundo de maneira ativa e criativa e estabelecem relações com as pessoas que convivem e com o que está ao seu redor. Assim, participam direta ou indiretamente de práticas sociais que acontecem em grupo e, neste processo, se apropriam de significados coletivos e atribuem sentidos singulares a tais práticas. “Ler e escrever fazem parte destas práticas. Só que os textos que circulam, como circulam e os significados atribuídos a eles por cada grupo social são bastante distintos. Cabe à Educação Infantil conhecer as práticas de leitura e de escrita que as crianças vivenciam e ampliá-las”, afirma a professora.
De acordo com Patrícia, as crianças devem ter oportunidade de vivenciar situações reais ou imaginárias nas quais possam saber o que se lê, o que se escreve, para quem e como se dirigem, em que situações a escrita se torna necessária. Ela ressalta que, ao terem a oportunidade de observar a professora registrar por escrito o relato delas sobre o passeio que fizeram, anotar as histórias que criaram e tantas outras situações significativas para o grupo, as crianças ampliam as inserções nas culturas do escrito.
“Entender o como se lê e como escreve se inicia nas tentativas de as crianças se colocarem no lugar de leitoras e de produtoras de texto, lendo e escrevendo inicialmente de forma não convencional para, aos poucos, irem se apropriando de uma nova linguagem, que possibilita uma nova forma de interagir no/com o mundo”, observa a professora da UFRJ.