Há 20 anos, o Brasil deu um passo histórico rumo à construção de uma sociedade antirracista, tendo como ponto de partida a sala de aula. Em 9 de janeiro de 2003, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) foi acrescida do seguinte dispositivo: “Nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. Tanto tempo depois, porém, apenas uma pequena parcela das escolas avançou no cumprimento de uma norma fundamental para reformar as estruturas de um país fundado no racismo.
Esse cenário é demonstrado pelos resultados da pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, realizada pelo Instituto Alana e o Geledés – Instituto da Mulher Negra, com apoio da Undime, da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme) e da organização internacional Imaginable Futures.
Ao longo de 2022, o estudo buscou aferir como e se foram construídas condições para combater o racismo estrutural, quais os passos percorridos, as lacunas existentes e os desafios que compõem o grave cenário da implementação da lei nas redes municipais de ensino, principais responsáveis pela educação básica do país. Elas atendem 49,6% das crianças e dos adolescentes matriculados, segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica 2022.
Das 5.568 secretarias municipais de educação convidadas a participar da pesquisa, 1.187 (21%) responderam ao questionário digital enviado pelas organizações. Destas, 71% informaram realizar pouca ou nenhuma ação para a efetividade da Lei 10.639/03. Apenas 29% das secretarias realizam ações consistentes e perenes para garantir a implementação da norma.
A pesquisa, que contou com expressiva participação dos municípios do Nordeste, teve os resultados divulgados em abril de 2023. A maioria dos respondentes foram dirigentes de educação dos municípios ou técnicos das secretarias com experiência na pasta. Entre as pessoas que responderam ao questionário, a maioria é de mulheres, 50% delas, negras.
Além de informações sobre o perfil do gestor respondente, foram coletados dados sobre alterações na estrutura administrativa das secretarias; regulamentação da lei em nível municipal e estadual; ações realizadas sobre o tema; formação de profissionais da educação e uso de materiais didáticos; articulação com organizações da sociedade civil e/ou instituições de educação; além das percepções dos gestores e desafios para a implementação da lei.
O maior grupo (53%) realiza ações menos estruturadas, episódicas e recreativas, geralmente atreladas a projetos isolados ou em datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. Nesses casos, o trabalho fica sob a responsabilidade de um grupo pequeno ou mesmo a cargo de uma pessoa, sem estrutura e suporte institucional efetivo.
As secretarias que admitem não realizar nenhum tipo de ação para o cumprimento da Lei representam 18% do total, embora conheçam a normativa ou tenham estabelecido sua regulamentação em nível local.
Em relação às secretarias que executam ações consistentes e perenes para garantir a efetividade da lei (29%), elas têm em comum estrutura administrativa, regulamentação local, dotação orçamentária e periodicidade na realização de ações para atender às Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-Raciais.
A Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, torna obrigatório o ensino da História e Cultura e define, no 1º parágrafo, que “o conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.
Para Beatriz Benedito, analista de políticas públicas do Instituto Alana, a pesquisa, respondida prioritariamente por Dirigentes Municipais de Educação, demonstra uma falta de prioridade na construção de uma escola antirracista. “Para nós, os municípios precisam tornar a pauta prioridade na agenda política, de modo que se inclua o ensino de cultura e história da África e afro-brasileira no planejamento das secretarias e das políticas educacionais”, diz.
Racismo Estrutural
Para Tânia Portella, sócia e consultora em Educação do Geledés – Instituto da Mulher Negra, os resultados do levantamento refletem, entre outros pontos, as dificuldades para o Brasil se livrar do racismo estrutural de sua sociedade. Segundo ela, os resultados da pesquisa também são indicativos dos casos que estão no caminho assertivo para a implementação, municípios que dotaram orçamento, estruturaram regulamentação local, adequaram o currículo, planejaram ações, constituíram instâncias de acompanhamento, e ofereceram formação continuada.
Glória Almeida, analista de Projetos Sênior do Instituto Natura, considera que a implementação da Lei 10.639/03 foi e ainda é um desafio para as escolas. Segundo ela, o cenário demonstrado pela pesquisa é uma das consequências dos retrocessos vividos pelo país nos últimos quatro anos, quando houve um vácuo do apoio concreto do governo federal aos estados e municípios pela disponibilização de recursos pedagógicos, financeiros, bem como de uma estrutura organizacional específica.